A história nos mostra o papel de Maria na Igreja
A Sagrada Escritura, que para nós é fonte da Revelação de Deus, fala de Maria. E para entendermos o papel dela na Igreja, vamos partir da Sagrada Escritura.
Nós lemos, na Carta aos Hebreus (1,1-2) que Deus, depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos, nestes nossos dias, que são os últimos, por meio de Seu Filho. Isso mostra que a Revelação de Deus foi progressiva. E esse “progresso” pode ser percebido também com referência à figura de Maria no plano da salvação.
Vamos ver isso na leitura e na meditação dos Evangelhos. Marcos é o evangelista mais antigo, que escreve antes da destruição de Jerusalém do ano 70 d.C. Em seguida, temos os evangelhos de Mateus e Lucas; por último, no fim do 1º século, aparece o Evangelho de João.
O Evangelho de Marcos se concentra, particularmente, na Paixão de Cristo, com uma ampla introdução sobre sua vida pública, mas não fala nada da infância de Jesus. Nesse Evangelho, Maria aparece apenas como a “Mãe de Jesus” no meio dos parentes (3,31-35;6,3).
Maria acolhe a Palavra de Deus
Na Palavra, Mateus ressalta mais a figura de José, descendente de Abraão e Davi, o “esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo” (1,16). Logo depois, fala do nascimento virginal de Jesus, como cumprimento da profecia de Isaías (7,14). Maria aparece, em seguida, como protagonista, juntamente com Jesus e José, na cena dos Magos e na fuga para o Egito. Mateus ressalta o papel de Maria, que, como mãe, cuida do filho, junto a José, que nunca é chamado de “pai”.
Logo em seguida, aparece o evangelista Lucas, que é o teólogo de Maria. Ele é o evangelista que mais fala de Maria, não só para apresentar fatos da sua vida, mas para a apontar como figura do verdadeiro discípulo e do verdadeiro crente. Ela é a primeira “cristã”, o “modelo dos cristãos”.
Maria, pois, é aquela que acolhe a Palavra de Deus. Trata-se da cena da “Anunciação” que, mais propriamente, deveríamos chamar de “vocação de Maria”. Ressalta-se que, em toda a Bíblia, Maria é a única que recebe o título de “cheia de graça”. Ou melhor, ficando com a tradução literal do termo grego utilizado por Lucas, Kecharitomene (κεχαριτωμένη), deveríamos dizer: “Tu que já estás cheia de graça”.
Maria, diante deste chamado, considera-se a “serva do Senhor”, totalmente disponível diante do plano d’Ele. Eis o modelo do crente e do discípulo.
Maria acredita na Palavra de Deus
Trata-se do episódio da visitação a Isabel. Nesta ocasião, Isabel proclama a bem-aventurança de Maria, “aquela que acreditou” (1,45). E aparece o primeiro cântico na boca de Maria: O “Magnificat” (Minha alma engrandece o Senhor: 1,46-56). Aliás, é interessante ressaltar a presença de Maria nos outros dois cânticos de Lucas: O Benedictus (“Bendito seja o Senhor Deus de Israel”), proclamado por Zacarias, pai de João Batista; e o Nunc dimittis (“Agora, Senhor, podeis deixar ir em paz vosso servo”) de Simeão, quando Maria e José apresentam o Menino Jesus de 40 dias no templo.
Esses cânticos que tiveram Maria como protagonista (o Magnificat) ou como testemunha (o Benedictus e o Nunc dimittis), hoje, tornaram-se, na Liturgia das Horas, a oração da Igreja.
Maria medita a Palavra de Deus no seu coração
Para Lucas, Maria é aquela que acolhe a Palavra de Deus, acredita n’Aquele que falou e a guarda no seu coração, meditando-a. Essa é a atitude de Maria, depois da visita dos pastores (2,19) e do reencontro com Jesus, com 12 anos de idade, no Templo (2,51). Mas a mesma expressão se encontra quando Jesus responde à mulher que proclamava “Feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram” (11,27). Vamos continuar lendo: “Mas ele respondeu: “Felizes, antes, os que ouvem a Palavra de Deus e a observam” (11,28). Interessante, a esse respeito, é o comentário que fez Santo Agostinho. “Mãe e discípula ao mesmo tempo”, e acrescentava com ousadia que ser discípula, para ela, foi mais importante do que ser Mãe. Nesses termos: “Santa Maria fez a vontade do Pai e a fez totalmente; por isso foi mais importante para Maria ter sido discípula do que Mãe de Cristo” (Sermão 72A,7).
Maria caminha na fé
Sim, porque ela vivia de fé e não de “visão”. Como nós, ela caminhava, a cada dia, em situações frequentemente inexplicáveis, mas sempre confiando em Deus. Essa é a atitude dela, por exemplo, quando, por três dias, ficou procurando o filho que tinha permanecido no Templo, sem avisar a ela e a José. Ela pergunta, depois: “Filho, por que fizeste isso conosco? Teu pai e eu te procurávamos, cheios de aflição!” (2,48). E eles “não compreenderam o que lhes dizia” (2,50). Maria medita nestas palavras, apesar de ainda não compreender. Caminha na fé, confia em Deus. Ela também, somente depois da Páscoa, “depois de três dias” ( (2,46), irá compreender estas palavras.
E, por fim, temos o evangelista João. Ele volta ainda mais para trás: “No princípio”, antes da criação: “No princípio era o Verbo” (1,1). E este “Verbo “se fez carne” (1,14). Ele se coloca num outro nível da narração, com o seguinte objetivo teológico: apresenta os fatos da vida terrena de Jesus como o sinal da revelação do Pai: suas páginas querem descer na profundidade para colher o mistério. Por exemplo, a partir da água que pede para a Samaritana, é anunciada uma “ fonte de água corrente para a vida eterna” (4,14). Ou, antes de ressuscitar Lázaro, Ele afirma: “Eu sou a ressurreição e a vida” (11,25). No caso de Maria, João nunca a indica com o seu nome, mas ela é a “Mãe de Jesus”, que aparece em Caná (2,1) e aos pés da cruz (19,25).
As núpcias são o sinal do encontro entre Deus e o Seu povo; e o vinho é sinal de alegria e amor. Maria, em Caná da Galileia, é chamada de “mãe”: é o seu papel. Ela é a “Mulher”, símbolo de Israel, esposa de Deus. No relato das Bodas de Caná não se fala da noiva. Trata-se de um esquecimento? Não. A esposa é apresentada na figura da Mãe. “A minha hora ainda não chegou” (2,4), diz Jesus. Trata-se da hora da morte-ressurreição-dom do Espírito. Mas aqui Jesus já antecipa o que será completado na hora da cruz. Maria reage às palavras de Jesus, mostrando, com os fatos, que existe uma relação entre Ela e o Messias, e convida os servos nestes termos: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (2,5).Trata-se do convite explícito para acolher a novidade apresentada por Cristo. E o vinho de ótima qualidade é o sinal da graça, da Nova Aliança e das novas núpcias. Maria, pois, aqui aparece como representante do povo fiel, Esposa de Deus que escancara os braços para acolher a Novidade. Os discípulos, por sua vez, souberam reconhecer no sinal do vinho a “Glória” (2,11), quer dizer a presença poderosa e operante de Deus em Jesus. Por isso acreditaram n’Ele (2,11).
No momento da cruz, chegou a “hora”; e aparece novamente a “Mulher”, “de pé”, junto à cruz (19,25-27). E está presente o discípulo que Jesus amava. Nenhum dos dois é chamado pelo nome, mas com uma palavra que aponta, respectivamente, para o papel deles. A “Mãe” precede, representa a origem; o “discípulo” apreende, segue e continua. A Mãe representa o passado e o discípulo o futuro; a Mãe é o Israel fiel; o discípulo é o novo povo fiel que Jesus ama. Sim, trata-se de Maria e João, mas também, no símbolo, dessas duas grandes realidades da história da salvação. Na hora decisiva, Jesus chama a mãe de “Mulher” e lhe entrega o “discípulo”. Trata-se do momento da passagem da aliança e da acolhida do novo filho. Ao discípulo, Jesus entrega a mãe, e, a partir daquele momento, “o discípulo a acolheu” (19,27). Temos aqui o fundamento da maternidade espiritual de Maria, para cada discípulo do Cristo e da herança espiritual do antigo Israel, que agora é entregue à Igreja. À Mãe e ao discípulo, misteriosamente unidos, o Messias entrega Seu Espírito, sua vida, a vida mesma de Deus. “Inclinou a cabeça e entregou o Espírito” (19,30).
Maria nos Atos dos Apóstolos
Somente uma vez Lucas fala de Maria depois da Ascensão: “Todos perseveravam unânimes na oração, junto com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus” (Atos 1,14).
Dois termos significativos: a perseverança e a concórdia. Nessa perfeita caridade, Maria está presente, partícipe da perseverança, da concórdia e da oração.
Continuando com a visão de Lucas, anteriormente indicada, pode-se afirmar que Maria é o modelo do discípulo e do crente que persevera na fé, vive em concórdia com os irmãos e em comunhão com o Senhor por meio da oração confiante.
Aqui também Maria é apresentada como a Mãe da Igreja. Eis o seu papel.
Lino Rampazzo
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Lateranense (Roma)
Coordenador do Curso de Filosofia da Faculdade Canção Nova